terça-feira, 15 de setembro de 2009

As voltas e as aventuras serranas: Guarda-Torre-Guarda


Correspondendo ao desafio proposto pelo camarada Vasa, desloquei-me à cidade mais alta de Portugal para uma jornada de montanha de grande exigência. Atractiva quanto baste para me meter à estrada para mais de 600 km de automóvel em menos de 24 horas, à procura de ciclismo ao seu mais alto nível, engodo imperdível para quem, como eu, aprecia e pratica com dedicação a bela modalidade. E para todos os que amam a «pequena rainha» - como os francesas apelidam, com devoção, a bicicleta.
O percurso era minimamente... convidativo! Cerca de 160 km, em versão mais racional do megalómano traçado original (200 km) proposto pelo desmedido duo: Vasa e Manso «Cancellara». Este, mais acessível (!!), incluiu passagens pela Guarda, Torre por Manteigas, Penhas Douradas por Sabugueiro e regresso à Guarda pelo caminho inverso, com ascensão final a partir de Valhelhas.
Apenas quatro participantes. O «Cancellara» era presença segura, mas enfermou de uma otite e ficou de baixa. À partida, da zona Norte da Guarda, eu (Ricardo), o Vasa, o Xico Aniceto e o Rui Torpes. A mulher deste, Maria, corria por fora, cumprindo, em solitário a secção nuclear do trajecto: Manteigas-Torre-Sabugueiro-Penhas-Manteigas. Sim, leram bem!
Eis a crónica de uma verdadeira prova de superação física e anímica, que fica registada na memória, pela grandeza das dificuldades que se impuseram, pelo sofrimento inerente, e pelo prazer do ciclismo de alta montanha e, claro, pela sua concretização.
Como se não bastassem as próprias exigências da jornada serrana, estas acentuaram-se devido a fortíssimo factor exógeno: o intenso calor. Pouco depois das 8h30, na Guarda, os termómetros já marcavam 26º C. Pronúncio de canícula.
Assim, o aquecimento nitidamente dispensável, pela elevada temperatura, fez-se... a frio, pela necessidade de forçar os músculos nos primeiros 4 km da tirada, em subida a 5,5% que cruza a cidade da Guarda, de Norte para Sul. Antes de começar a finalmente descer, primeiro por patamares, durante 14 km, atravessando aldeolas ainda adormecidas, e depois em vertente mais longa e constante (8 km) em direcção ao vale, a Valhelhas, as minhas sensações não eram as melhores, considerando que me (nos) esperava. As pernas embrulhadas e a sede precoce não pronunciavam dia bom.
Ao descer a caminho de Valhelhas, ficou-se a saber o teríamos de «passar» no regresso. Principalmente, a lindíssima subida quando se deixa estrada entre Manteigas e Belmonte, em direcção à Guarda. Não é dura, com 4,5% de inclinação média, mas com mais de 130 km nas pernas não se antevia tão acessível.
A descida foi fresca e relaxante, após o começo exigente e abafado na Guarda. Aproveitou-se para deslizar a 50 km/h, cortando as curvas de uma estrada muito bem asfaltada àquela hora inteiramente por nossa conta. Em Valhelhas, o mercúrio confirmava a fresquidão matinal no sopé da Estrela. A longa descida, a ritmo tranquilo, foi óptima terapia para o corpo, que dava indicações de melhoria.
Mas o sol (ameno) foi de pouca dura. Em 45 minutos ou 20 km, de ligação a Manteigas em falso plano ascendente, que à medida em se aproxima Manteigas se vai tornando cada vez mais ascendente e menos falso plano, a temperatura subiu para os 31º C. Novo «aquecimento» forçado e uma vez mais desnecessário antes de atacar a subida à Torre, a primeira grande (e a maior) dificuldade montanhosa.

A Torre
Nos primeiros quilómetros, duros, o quarteto «individualizou-se», com cada elemento a meter o seu andamento para enfrentar a longa e difícil ascensão. O Xico destacou-se ligeiramente após o Viveiro das Trutas e na frente andou isolado durante algum tempo, até ganhar a companhia do Rui Torpes, que se adiantara depois de ter permanecido ao meu lado nas primeiras inclinações fortes. O Vasa cedo «meteu» o seu passo, mantendo-se em posição mais recuada.
No primeiro terço da subida, o Rui foi ganhando paulatinamente vantagem sobre o Xico (20/30 metros), e este o dobro sobre mim, até que ambos pararam para abastecimento na fonte natural, ainda a meio caminho do cruzamento de Piornos. Quando passei no local, juntaram-se – mas também por pouco tempo. Separava-nos porventura menos de 1 km/h, mas como se sabe é «muito» em alta montanha e, neste caso, com tanto que havia para percorrer naquele dia, o ideal era forçar apenas o estritamente necessário. À passagem pelo cruzamento de Piornos/Covilhã mantinha-me a cerca de 20 segundos do duo, que agora não se desfazia. O Vasa seguia, à risca, o seu próprio ritmo. Acumulava desvantagem, mas ganhou muito com isso...
Durante a segunda e última fase da subida (depois da descida de Piornos) comecei a recuperar lentamente para os homens da frente, alcançando-os quase em simultâneo com a Maria, em pedalada leve e fluida, já depois do túnel. O Rui, qual macho extremoso, ainda manifestou a intenção de permanecer em solidariedade conjugal, mas fêmea mandou-o à sua vida. Mulher-desportista auto-suficiente, que provou classe e fibra. Ele (o macho) acedeu sem estrebuchar e aproveitando a deixa meteu o seu andamento, destacando-se definitivamente até à Torre, onde chegou com cerca de 30-40 segundos de vantagem sobre mim e o Xico – este, pelo «forcing» efectuado quando me assomei, pareceu não quer abrir mão do segundo lugar na contagem pelo prémio da montanha. Sempre é Categoria Especial!
O Vasa chegou cerca de 5 minutos depois, compensando a lacunas em alta montanha com sábia gestão de esforço. Nessa altura, já a Maria concluíra a sua subida, como se não fosse nada e decidida a continuar na nossa peugada, rumo às Penhas Douradas. Insisto: impressionou-me a sua capacidade e gosto pelo ciclismo!
No ponto mais alto de Portugal Continental, a 1993 metros de altitude, faziam 27º C, imagine-se o que nos esperava lá em baixo...

Penhas Douradas
A descida da vertente de Seia, para o Sabugueiro, tem asfalto novo, impecável, e as inclinações metem respeito após a Lagoa Comprida. Até ao Sabugueiro, a aldeia mais alta de Portugal, a paisagem é estonteante. Só a precaução ao «negociar» o sinuoso traçado da estrada não permitiram que mergulhasse o olhar nas arrebatadoras vistas sobre a serra. Lavagem de alma... e de pernas, agora folgadas depois de intenso esforço na subida para a Torre. Contam-se 18 km nem sempre a descer até ao cruzamento das Penhas Douradas, à saída do Sabugueiro. Tranquilamente, eu e o Torpes fizemos média de 42 km/h, o Vasa e o Xico registavam estranho atraso, que motivou um compasso de espera antes de atacar a subida para as Penhas.
O Xico passava mal, ainda em descida, que a partir daí impunha toada moderada ao restante terceto. O trajecto de ligação entre o Sabugueiro e a estrada Gouveia-Penhas Douradas faz-se inicialmente em subida (4 km a 6%) e depois em falso plano ascendente (9 km a 1%) até ao Observatório Meteorológico. A ascensão nada acrescenta aos colossos que a circundam, a estrada é rugosa e o alcatrão tem troços degradados e até a paisagem é inóspita, tal como o tráfego automóvel, quase nulo.
Todavia, logo que se passa o parque de merendas da Penhas e se inicia a descida para Manteigas é o... deslumbramento! O Vasa alertou para o cenário à nossa direita, vista esplendorosa sobre Manteigas e o vale do Zêzere, por onde se descortina o serpentear da subida para a Torre pelas encostas escarpadas. Ainda por aí tínhamos passado há pouco mais de duas horas. Impressionante é também a vista sobranceira sobre Manteigas, que está literalmente debaixo de nós - contudo, a 17 km de distância. Por isso, a descida é toda enrolada, em ganchos sucessivos, qual Alpe D'Huez. A sua inclinação é suave (3,6%), mas se lhe retirássemos cerca de 4 km ganharia certamente grau de dificuldade e tipologia comparáveis ao mais célebre «col» alpino. Caiu no goto, ficando a vontade unânime de a subir em próxima ocasião. Recorde-se que foi rota da última edição da Volta a Portugal.
À chegada a Manteigas, aguardava-nos o... inferno. Tórrida soalheira sob 35 ºC. Urgente reabastecimento, líquido e sólido, na nossa base, estabelecida no veículo em que a Maria se deslocou desde a Guarda, e que a levaria de regresso depois de concluir a sua prova.
O ar seco acentuava o efeito escaldante. Logo que retomámos a marcha, após «litradas» de líquidos ingeridas, sentíamos a massa de ar de quente que se deslocava ao movimento da pedalada a envolver-nos as pernas.

O que restou...
Na ligação a Valhelhas, pela primeira vez na já longa tirada afectou-nos sermos tão escassos em número. Recomendava-se cooperação de esforços na condução do grupo e nunca quatro pareceram tão poucos. Aliás, três, descontando o Xico que não estava em condições de contribuir. Mesmo com o termómetro a subir até aos 39 ºC, fez-se o trajecto (14 km) a média superior a 38 km/h. Mas a partir de Valhelhas, a estrada voltava a empinar. Os «tais» 8 km a 4,5%... debaixo de torreira: 41 ºC.
Ao longo da subida, as forças iam-se esgotando... mas não para todos. O Torpes parecia energizado, com baterias novas e queria gastar todas as reservas que acumulara ao longo da tirada, que convenhamos, foram muitas. Está em nível superior aos demais: competição, treino, capacidade inata de trapador – tudo junto num cocktail que na altura de rapar o fundo ao tacho, é muito mais consistente.
A propósito, enquanto subíamos controlando o desgaste do Xico, Vasa tem mesmo uma «tirada» que só o muito sol apanhado na moleirinha perdoa. Às tantas, quando o Torpes se deixa a atrasar ligeiramente, tentando, uma vez mais, contactar a mulher em vão - devido ao descarregamento dos telemóveis (de ambos!!) -, o mentor desta fantástica iniciativa serra tem a seguinte expressão impregnada de ingenuidade: «Rui, o andamento vai muito alto?». Ouvi, franzi a testa e baixei a cabeça sobre o guiador à procura de mais um gole de água. A resposta, com dúvida, foi isenta de vaidade: «Não percebi o que disseste?», inquiriu o mau receptor, talvez incrédulo como eu. Repetiu-se a pergunta, com as letras todas. Então, a resposta não poderia escapar. Foi cortante, por ser tão exacta e caiu como balde de água fria: «Não, vai muito baixo!». O Vasa deve ter percebido finalmente que o Torpes estava a marcar passo. Pelo nosso, baixiiinho...
À medida em que ascendíamos na cota do terreno, o ar ficava ainda mais seco, acentuando a sede e a fadiga. Descobriu-se uma torneira num tanque de lavar roupa de um casebre com aspecto abandonado. Bebeu-se e entornou-se pelo corpo em quantidade que dava para lavar de toda a família. Os SMAS da Guarda facturaram.
Finalmente o topo! E logo uma descida, infelizmente curta. Seguida de uma estranha rajada de ventos cruzados, daquelas que alimentam os incêndios que teimavam (ou teimam) em lavrar na região. Apenas com o anúncio do final das maiores dificuldades ganhou-se alma nova, e até o calor pareceu conceder-nos uma trégua. Seria ilusão de pré-insolação?!
O relevo tornou-se, de facto, mais favorável. A Maria finalmente chegava de Manteigas, de carro, descansando o marido. Que voltou a aproveitar a deixa (como na Torre) para agora disparar em sprint até à Guarda, na derradeira subida da jornada. Também aí, entre o trio perseguidor, se descobriram forças inesperadas. O próprio Xico... renascia. Até ao local da partida/meta voámos à média de 40 km/h, infringindo a lei sobre circulação de velocípedes sem motor em vias rápidas. Valia tudo, após 6h12m de selim e 158,2 km, à média de 25,5 km/h. Outros dados pessoais: pulsação média: 145 bpm (máx: 178); calorias dispendidas: 5545.
Enorme desafio, amplamente cumprido, em percurso digno de uma Clássica estrangeira, do tipo da Etapa do Tour ou Quebraossos..., com 3000 metros de acumulado, verdadeiros «cols», passagens em altitude e, acima de tudo, enquadramento paisagístico fabuloso. Experiência que se recomenda e se quer repetida em anos vindouros – com temperaturas mais amenas, de preferência.
Quanto a mim, asseguro que trocaria uma daquelas clássicas estrangeiras por uma reedição de tirada deste género. Por isso, caro Vasa, tens a responsabilidade não deixar cair a iniciativa, e de a promover! Reunindo mais dois ou três poderosos – nem sequer se necessitam mais...-, ainda se fará melhor e mais facilmente! Mas quem é que aqui falou em facilidades?!
Para o ano, estarei lá! Comecem desde já a pensar no percurso, só para criar ansiedade...

Abraço

3 comentários:

  1. Bela cronica. Agradeço a tua amabilidade sendo que eu ando com pouca inspiração para escrever.
    Sinceramente não foi bem gestão de forças a minha subida para a Torre. Após ter puxado no falso plano, a paragem em Manteigas, fez-me mossa. Não consegui aquele ritmo vivo com rotação que normalmente consigo fazer. Além disso cometi um erro. Devia ter colado à tua roda. Já na Subida desde o Sabugueiro estava lá para as curvas.
    Quanto ao episódio, como lhe chamas com o Torpe, não foi por mal. Só depois percebi que ele tinha ficado para trás para tentar ver como estava o Xico que me tinha alertado para o passo na subida de Valhelas, após ele ter ficado para trás. Que moeu mesmo muito, o Xico.

    A aproximação à Guarda foi feita com um ritmo acelerado subida acima, após verificar que afinal o Xico tinha renascido. Nada mal.
    Desde que sinta o apoio que recebi, certamente teremos mais edições desta Super Clássica. Acho que da próxima poderá haver pequenas alterações de percurso. Abraços

    ResponderEliminar
  2. Boas Ricardo,

    Em 1º lugar aproveito para cumprimentar e felicitar os 4 aventureiros que fizeram esta tirada.
    A mim, por motivos de saúde que julgo conseguir ultrapassar em definitivo na próxima semana, não me foi possível estar à partida desta tirada, que em função da minha agenda familiar foi marcada para um domingo, quando o mais natural seria ser num sábado com vantagens para quem tem de fazer viagens de regresso e/ou tem de trabalhar na segunda-feira. A vontade era grande mas quando o 1º antibiótico deixou de fazer efeito tive de me render à evidência e desistir...

    A partir da tua descrição relembro passagens e principalmente dificuldades que semanas antes tinha enfrentado em solitário num percurso com regreso à Guarda semelhante.
    Principalmente na súbida final de Valhelhas em que fiquei sem àgua e desesperei como nunca. Como dias antes, da vossa volta, tinha informado o Vasa deste local penso que vos deve ter sido de grande utilidade visto que a súbida é longa quando os km se acumulam no contador...
    Quanto ao "pecado" de circular na via rápida (VICEG) depois destes km todos - "Quem nunca pecou que atire a 1ª pedra"

    No próximo ano espero estar lá para vos acompanhar sem fungos e bactérias em excesso!

    Até breve - Boas pedaladas!

    PS - Penso que a quilometragem em torno dos 200 km deve existir. A esse propósito vou lançar umas ideias neste blog, já discutidas e desenvolvidas com o Vasa, ao pessoal, muito em breve, inserido num conceito de maratonas "longas" que julgo que têm espaço no calendário e vontade de alguns.

    ResponderEliminar
  3. Olá pessoal de Manteigas. Como vos invejo (no sentido positivo).

    Já viram que o Manso é dessa Zona, um beirão de Sabugal. Eu sou cá de Baixo, Saloio com muita honra, mas apaixonado por gentes dessa região. Havemos de nos encontrar. Vou-vos adicionar no blog e messenger. Façam o mesmo connosco!

    ResponderEliminar